Uma compreensão não metafísica dos seres humanos
Os seres humanos, reiteramos,
não possuem um ser pronto, fixo, imutável. Ser humano é estar em um processo
permanente de vir a ser, de inventarmos, e reinventarmos dentro de uma deriva histórica.
Não sabemos o que somos, e também não sabemos o que poderemos vir a ser. Como
escreveu Shakespeare: “sabemos o que somos, mas não sabemos o que poderíamos
ser.” Nossos seres indeterminados, é um espaço aberto apontado para o futuro.
Uma compreensão ontológica de
nós mesmos, nunca pode nos dar uma resposta concreta e determinada à pergunta
do que significa ser humano. Nosso ser é um campo aberto ao projeto. O que uma
aproximação ontológica pode nos entregar, são algumas distinções gerais que servem
como parâmetros para definir uma estrutura básica de possibilidade neste
processo aberto do vir a ser. Não pode prover nem mais, nem menos que isso.
Esta estrutura geral de
possibilidades que partilhamos todos os seres humanos, é o que Martin Heidegger
chamou “Dasein”, o “ser no mundo” que somos. Ontologia é a indagação de Dasein.
A filosofia de Heidegger nos proveu um importante ponto de saída. No entanto,
foi só mais tarde em seu desenvolvimento intelectual, quando a maior parte de
seu trabalho ontológico já estava feito, que Heidegger se abriu ao
reconhecimento de que para entender o que significa ser humano, devemos
recorrer a linguagem. Os seres humanos, reconheceu Heidegger, habitam na
linguagem.
Talvez os dois filósofos mais
importantes que viram desta maneira a alma humana, tenham sido Heráclito e
Nietzsche. Heráclito viveu na Grécia antiga muito antes do surgimento dos
metafísicos.
Quando lemos a Platão e
Aristóteles, percebemos de que tinham como seu principal componente a
Heráclito. A metafísica, de alguma maneira, foi uma tentativa de provar que
Heráclito estava errado. Se queremos superá-la, pode ser que tenhamos que
voltar a seus ensinamentos.
Nietzsche foi considerado por
muito tempo uma espécie de terapia filosófica, um proscrito, um pensador
sacrílego, um iconoclasta. Poucas pessoas entenderam realmente o que ele queria
dizer. Muitos pensaram que Nietzsche se contradizia com freqüência.Ele chegou à
filosofia através da filologia, uma disciplina que se interessa pela linguagem,
pelo estudo das línguas e a literatura dos antigos gregos e romanos.
Isto lhe permitiu contatar-se
desde cedo com o trabalho dos pre-socráticos, os filósofos que viveram antes de
Sócrates, Platão e Aristóteles. Uma vez que Nietzsche tomou contato com o
pensamento de Heráclito, compreendeu que nele estava presente uma perspectiva
totalmente diferente da que oferecia o programa metafísico. Declarou a
Heráclito, seu mentor.
Tanto Heráclito como Nietzsche
entenderam que para compreender os seres humanos, não podemos concentrarmos
somente em seu “ser”, mais também devemos olhar para o que são, para o espaço
no qual se transcendem as formas atuais de ser e de participar do processo do
vir a ser. Neste processo do vir a ser se requer dar importância tanto ao ser
como ao não ser, a este ciclo que reúne o ser e o nada, esta eterna passagem do
um e do outro. Ser humano, segundo Nietzsche, pode ser visto como um processo
no qual estamos permanentemente fugindo do nada, enquanto que, ao mesmo tempo,
somos impulsionados para o nada, para o sem sentido de nossas vidas, e
induzidos à necessidade de recriarmos constantemente um sentido.
Estamos, como disse Heráclito,
num processo de fluxo constante, nunca permanecendo iguais, mudando
continuamente como faz um rio. E como um rio, não podemos compreender como
somos, se somente nos concentrarmos em nosso lado do ser. Um rio sempre envolve
esta tensão entre o cheio e o vazio, entre o ser e o não ser. Se somente nos
detivermos no cheio, já não temos um rio, mais sim um lago, um estanque ou
inclusive um pântano. Se somente nos fixarmos no vazio, também deixamos de ter
um rio, temos agora um canal seco, sem movimentos, sem vida própria.