19 de janeiro de 2015

Generosidade


A generosidade é a virtude do dom. Não se trata mais de “atribuir a cada um o que é seu”, como dizia Spinoza a propósito da justiça, mas o de lhe oferecer o que não é seu, o que é de quem oferece e que lhe falta. Que também se possa assim satisfazer a justiça, certamente é possível (dar a alguém o que, sem ainda lhe pertencer, sem mesmo lhe caber segundo a lei, lhe é devido de uma maneira ou de outra: por exemplo, dar de comer a quem tem fome), mas isso não é necessário nem essencial à generosidade.

Daí o sentimento que às vezes se pode ter de que a justiça é mais importante, mais urgente, mais necessária, e de que ao lado dela a generosidade seria como que um luxo ou um suplemento de alma. “É preciso ser justo antes de ser generoso”, dizia Chamfort, “do mesmo que se tem camisas antes de se terem rendas.” Sem dúvida.

Como as duas virtudes são de um registro diferente, não é seguro, porém, que o problema sempre se coloque nesses termos, nem com freqüência. Claro, justiça e generosidade dizem respeito, ambas, a nossas relações com outrem (principalmente, pelo menos: também podemos necessitar delas para nós mesmos); mas a generosidade é mais subjetiva, mais singular, mais afetiva, mais espontânea, ao passo que a justiça, mesmo quando aplicada, guarda em si algo mais objetivo, mais universal, mais intelectual ou mais refletido.

A generosidade parece dever mais ao coração ou ao temperamento; a justiça, ao espírito ou à razão. Os direitos humanos, por exemplo, podem constituir objeto de uma declaração. A generosidade não: trata-se de agir, e não em função de determinado texto, de determinada lei, mas além de qualquer texto, além de qualquer lei, em todo caso humana, e unicamente de acordo com as exigências do amor, da moral ou da solidariedade.

A generosidade nos eleva em direção aos outros, poderíamos dizer, e em direção a nós mesmos enquanto libertos de nosso pequeno eu. Aquele que não fosse nem um pouco generoso, a língua nos adverte que seria baixo, covarde, mesquinho, vil, avaro, cupido, egoísta, sórdido... E todos nós o somos, no entanto nem sempre ou completamente: a generosidade é o que nos separa dessa baixeza ou, às vezes, nos liberta dela.



A generosidade, dizia Hume, se fosse absoluta e universal, nos dispensaria da justiça; e vimos que isso,  de fato, podia se conceber. É claro, por outro lado, que a justiça, mesmo consumada, não poderia nos dispensar da generosidade, por isso esta última é socialmente menos necessária, e humanamente, parece-me, mais preciosa.

Para que essas comparações, perguntarão, já que somos tão pouco capazes de uma e da outra? É que esse pouco, apesar de tudo, não é nada, ele nos sensibiliza quanto à sua pouquidão e às vezes nos dá desejo de aumentá-la... Qual virtude não é antes de tudo, mesmo pequenamente, um desejo de virtude?

Notemos, para concluir, que a generosidade, como todas as virtudes, é plural, tanto em seu conteúdo como nos nomes que lhe prestamos ou que servem para designá-la. Somada à coragem, pode ser heroísmo. Somada à justiça, faz-se eqüidade. Somada à compaixão, torna-se benevolência. Somada à misericórdia, vira indulgência. Mas seu mais belo nome é seu segredo, que todos conhecem: somada à doçura, ela se chama bondade.



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